Maria Léo Araruna
Moças de Bricolagem (2020)
Bricolagem como Afeto Futurístico
A coleção de esculturas “Moças de Bricolagem” tem sua origem em uma necessidade inexplicável de usar minhas mãos. Há muito, escuto esse pedido sangrado de minhas cutículas roídas, mas não sabia como satisfazê-lo. Foi, então — em uma daquelas noites em que me deito na cama cheia de êxtase criativo, sem conseguir dormir, porque não sei exatamente como catalisar essa pulsão interior —, que eu tive uma ideia: olhei para minhas bonecas na estante e pensei “vou fazer umas roupinhas pra vocês!”. Era já alta madrugada, 4 horas da manhã, e eu iniciei um processo o qual desarmou memórias e sensações hibernadas no meu corpo.
O “fazer” cuidadoso de cada boneca me apresentou mais que uma proposta fashion de baixa costura, pois também me sugeriu a montação de novas corporalidades e possibilidades criativas e críticas sobre o que pode um corpo. Traços subjetivos e encarnados da minha travestilidade se transmutaram nos materiais externos mais aleatórios e em suas respectivas combinações, construindo, assim, bonecas loucas importadas das ilhas mais baixas de um gênero degenerado.
Traços subjetivos e encarnados da minha travestilidade se transmutaram nos materiais externos mais aleatórios e em suas respectivas combinações.
Bonecoña 2
Escultura; 29 cm
Boneca barbie; balão; alfinete rosa.
2020
Bonecoña 1
Escultura; 36 cm
Materiais: boneca barbie; balão; saco de lixo azul; linha amarela; cola; papel de chocolate; milho de pipoca; fita de cetim preta; miojo; tampa de remédio e palito de fósforo.
2020
Um erotismo irracional na construção dessas dolls me ensinou, mais uma vez, que o desejo e a vontade, muitas vezes, vêm antes de qualquer explicação sobre “por que fazer?”. Eu só estava no presente vivenciando algo que meu corpo, de forma simultânea, imaginava e traduzia em realidade. E, então, narrativas e significados iam despontando, aos poucos, de cada estética que era produzida. Um conhecimento sensorial e artístico — pouco cartesiano, pouco idealizado — lotado de impulsos, atitudes e intuições durante aquele a~con~te~ci~men~to trouxe oxigenação às demandas corporais, profissionais e sociais — sempre muito lógicas e ponderadas — que, por muito tempo, o capitalismo e a cisnormatividade, em conjunto, vêm me assombrando.
O processo de criação dessas bonecas também foi um rememorar, em outros contornos, da minha própria caminhada de transição de gênero. Pois, em 2015, em uma noite como essa, cheia de desejos à flor da pele, eu me levantei, fui ao banheiro, olhei para mim no reflexo do espelho e disse: a partir de amanhã, você vai ser outra; e esse amanhã nunca mais terminou. E, agora, com essas esculturas, eu transcrevo novos horizontes às encruzilhadas que meu corpo trans carrega.
E é exatamente em relação a esses novos caminhos de ser corpo, de ser mulher e de ser criatura transvestigênere que pude alinhar a materialidade das dolls a outro trabalho meu: o livro “Bricolagem Travesti”, mais especificamente ao conto de nome homônimo que compõe essa obra literária. Nessa pequena história, eu retrato uma comunidade mulheril composta de travestilidades múltiplas cujos corpos são feitos pela técnica da bricolagem, ou seja, um “faça você mesma, sem precisar ter qualquer especialidade”. As personagens da narrativa são formadas por meio de um acoplamento ocasional — uma gambiarra — de diversos materiais fortuitos, mas capazes de trazer individualidade e potência imaginativa a cada uma delas. O que é mais especial, para mim, nesse conto, é a noção coletiva dessa bricolagem, pois por mais que cada moça construa sua corpa a seu gosto, sempre há uma troca de materiais entre elas; sempre há uma interferência de uma na possibilidade corporal de outra. O trecho a seguir do conto “Bricolagem Travesti” demonstra bem o que estou dizendo:
Bonecoña 3
Escultura; 32 cm
Boneca ken; balão; cola; alfinete rosa; fita de cetim rosa e marrom; pétala de flor seca; algodão; caneta nanquim; milho de pipoca e urso teddy em miniatura.
2020
“Com pedaços de madeirite para fazer os olhos; duros cristais de vidro para o que se convém chamar de pés; pastilhas de madrepérola para retocar os relevos de celulites; e argamassa para fixar o intestino de encanamento, as meninas da Vila Jaqueline eram todas formidáveis mosaicos. Seus corpitchos apresentavam encaixes e tentativas de organização. Elas eram feitas de ladrilhos. Pregavam azulejos ancestrais nas costas e brita suja nos dedos para fingir de anel.
A cultura do “monte a si mesma sem especialização” era firme nessas vilas mulheris que rodeavam a Cidade Grande. As meninas faziam de suas corpas resultados de marcenaria e alvenaria. Era bonito de ver suas construções; qualquer caco ou retalho fazia-se suficiente para ser um mero enfeite ou um importante órgão vital. A bricolagem era técnica capaz de apresentar uma infinidade a suas existências, pois não havia limites para suas matérias, já que sempre teria o pedacinho de alguém solto por aí pronto para ser reciclado e reutilizado em outro corpo. Portanto, as sobras, poeiras e resíduos de certas garotas não viravam lixo, mas substâncias a serem digeridas e retocadas, a fim de constituírem novas possibilidades de feminilidade"
Muitas vezes eu pensei em nomear cada doll, trazer alguma história que pudesse especificar o universo de cada uma, mas percebi que acabaria caindo em um processo de limitação de significados que é característico da ação de nomear; reduzir os caminhos imaginários que cada escultura possui para um nome que pudesse “representá-las” seria reprimir as interpretações do público a uma única concepção. Por isso decidi chamá-las genericamente de “Bonecoñas”, uma brincadeira entre “bonecona” e “coña”.
O primeiro termo é uma das nomenclaturas comumente utilizadas para se referir às travestis. Pode, em alguns contextos, estar ligado a uma visão fetichista-masculina-pornográfica sobre nossas feminilidades, mas também pode traduzir um deboche — ao ser utilizado pelas próprias travestis para se autorreferenciarem — às violências das normas de gênero cisnormativas, as quais criam corpos naturais e artificiais. E, agora, o termo ganha vigor com essa produção artística ao ser reinterpretado pelos músculos sensoriais de uma travesti artista, a qual esculpe uma feminilidade-outra à boneca barbie “cisgênera”. Já o segundo termo traz, além de uma marca territorial latina a essa produção, os seguintes significados, em espanhol: “piada”, “sacanagem” e “brincadeira”. Concepções estas muitas vezes associadas às corporalidades travestis de maneira pejorativa, mas que, aqui, mais uma vez, ganha nova roupagem (literalmente) ao dialogar com uma necessidade erótica que fora negada na infância para mim e para muitas crianças transfemininas: brincar de boneca. Além de que achei divertido falar “Bonecoña”, auahsuahsuhs. Tente você, agora, falar, aí mesmo, em voz alta.
Bonecoña 4
Escultura; 34 cm
Balão; cola; alfinete; bula de remédio; caixa de primogyna; caixa de cliane; caixa de espironolactona; comprimido cliane e cartela de primogyna.
2020
Bonecoña 5
Escultura; 42 cm
Boneca barbie; balão; cola; saco de lixo preto; massinha verde e vermelha; rolha; palito de dente e elástico.
2020
O futuro é uma tentativa constante, ele se faz pela gambiarra, em meio a erros e acertos, é uma bricolagem.
Diante de tudo isso, localizo a criação das esculturas “Moças de Bricolagem” e do livro “Bricolagem Travesti” dentro de um movimento linguístico muito maior o qual eu gosto de chamar de “Gramática-trans”. Este seria um campo de vasta construção narrativa sobre as experiências trans; um espaço no qual busca nas possibilidades linguísticas instrumentos de libertação e potência; onde não há a intenção de se diagnosticar histórias verdadeiras e certas sobre transgeneridades, mas tensões capazes de produzir novas afetações e sensações ainda inomináveis; um espaço linguístico que visa um futuro incerto, incalculável em seus pormenores, mas consciente de seu continuum, de seu estado de acontecimento, de existência pelo gerúndio, daquilo que existe enquanto se faz, por meio da erotização, da intensidade, da percepção, da intuição e da experimentação; um território que une historicidade e imprevisibilidade, onde permite que as sensações e as criatividades produzam significados, os quais, por sua vez, saibam que sempre estarão prestes a se deteriorarem em novas experiências sensoriais. Acredito que um futuro possível para os corpos trans não consegue ser um planejamento determinado (como um comunismo, por exemplo), em que já há sentidos e significados maciços pré-estabelecidos, mas, sim, uma possibilidade que se edifica no agora, em meio a toda essa gramática múltipla transvestigênere e interseccional que temos construído. O futuro é uma tentativa constante, ele se faz pela gambiarra, em meio a erros e acertos, é uma bricolagem.
Bonecoña 6
Escultura; 33 cm
Boneca barbie; balão; cola; moeda de 20 centavos e hematita.
2020
Bonecoña 7
Escultura; 42 cm
Boneca barbie; boneca amy pop; balão; cola; vidro de garrafa de cerveja; bola de gude; papel de revista e esmalte base.
2020